Este vídeo [vide link acima] é sobre Chocolate, figura linda que me inspirou na minha pesquisa de doutorado.
O texto que segue foi publicado na introdução da minha tese, em 2008.
Quando conheci o Chocolate,
ele estava em
uma movimentada calçada
no centro da cidade
ao lado de uma bicicleta
velha emprestada com
um caixote
cheio de livros
ainda mais
velhos doados por
“gente rica”.
Apesar da pressa,
não resisti à curiosidade
de parar diante
do olhar convidativo
e ansioso do vendedor.
Com seus
56 anos, cabelos
grisalhos e pele
judiada pelo melanoma
que se alastrava sem
piedade (apesar
de suas palavras
de admiração diante
do fato, ao comentar
“Dizem que não
é comum acontecer
com gente
de cor!”), Chocolate
era de uma simpatia
contagiante. Vivaz,
bem-humorado e com uma desenvoltura invejável,
rapidamente seduzia à compra e à admiração. Passados
quinze minutos de conversa,
ocorreu-me saber mais
sobre sua
história, dado
seu evidente
talento para
as vendas e para
lidar com o público, que
contrastavam de forma gritante
ao cheiro dos farrapos
que trajava. Foi então
que ouvi: “Sou analfabeto, dona, mas sou vendedor de livro...
porque livro
não tem que
ser vendido por
peso, tem que
passar de mão
em mão.”
Não
consegui evitar a lembrança
de minhas animosidades
com meus
superiores em
tempos nos
quais, sendo auxiliar
de biblioteca, tentava impedir
a troca de livros
descartados por alguns
centavos pagos
a papel velho,
quando sabia de escolas
em que
sequer havia um
espaço digno
com algumas poucas obras
para leitura.
E Chocolate continuou: “O pior
analfabeto é aquele
que sabe, mas
não lê!”.
Certamente Mário Quintana não objetaria a paráfrase
de sua frase:
“Os verdadeiros analfabetos
são os que
aprenderam a ler e não
lêem.” Convidei Chocolate a participar da pesquisa
e, diante de seu
entusiasmo, marcamos no dia seguinte,
na mesma biblioteca
que um
dia vendera a peso
livros iguais
aos que ele,
mesmo sem
poder ler, insistia em fazer passar
de mão em
mão. Emocionado por entrar pela primeira vez naquele espaço
tão agradável
em que
tantos saboreavam o prazer
que ele
não podia apreciar,
mostrei-lhe um exemplar
de seu livro
predileto: O maior vendedor
do mundo, de Og Mandino. Havia, muitos anos atrás, um homem que lhe contara a história,
disse-me. Li a ele um
trecho da obra
e, conforme avançávamos, ele só fazia
identificar-se ainda mais com aquele personagem
que, tal
qual ele
próprio, ia em
busca da felicidade
plantando honestidade e bons pensamentos.
Chocolate não pôde participar da pesquisa,
pois, mesmo que sua baixa autoestima dissesse-lhe o contrário, ele não
esquecera os primeiros passos da leitura,
aprendidos tantos anos
antes de ser
condenado a ficar do lado
de fora dos muros
escolares, devolvido aos pais por não ser igual a todo mundo. Nem por isso ele se tornou, entretanto,
alvo irônico
de seu impactante discurso
quintanesco. Ele era
e é, sim, fruto
de uma sociedade desigual
e de um sistema
escolar que
há muito se tornou ainda
mais carente
do que as próprias vítimas
que gera.