quinta-feira, 26 de maio de 2011

A polêmica do livro didático

Muito se tem falado a respeito do livro didático Por uma vida melhor, da coleção Viver, Aprender, produzido pela ONG Ação Educativa e distribuído pelo MEC à rede pública.

Desde que a imprensa passou a divulgar manifestações escandalizadas com usos linguísticos corriqueiros do português brasileiro citados pelo livro, tais como "Os menino pega o peixe" (vai dizer que nunca falou assim ou ouviu alguém falando? Hein? Hein?), muitos contadores, jornalistas, médicos, advogados, humoristas, membros da ABL e demais cidadãos comuns têm-se sentido autoridade no assunto para proliferar sandices que só fazem reforçar o preconceito linguístico, tão presente em nosso meio.

Como linguista - autoridade cientificamente estabelecida para debater o assunto, portanto - , sinto-me na obrigação de também me posicionar a respeito. Opto, porém, por fazer minhas as palavras de mais de quatro mil colegas linguistas, em nota da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN) ao alvoroço promovido pela imprensa (confira, no link a seguir, o texto na íntegra)... e aproveito, ainda, para partilhar com vocês uma entrevista com o Prof. Marcos Bagno (UnB), referência nacional, quando se trata do tema "preconceito linguístico".

Nota da ABRALIN:
 http://abralin.org/noticia/Did.pdf

Entrevista com o Prof. Marcos Bagno:

Folha Dirigida, 24/05/2011 - Rio de Janeiro RJ


*Polêmica do livro didático*


Em defesa de um português brasileiro nas escolas (Alessandra Bizoni)

Escritor, tradutor, linguista e professor da Universidade de Brasília (UnB), Marcos Bagno milita, há décadas, contra o "preconceito linguístico" no Brasil e foi o primeiro especialista a sair em defesa dos autores do livro "Por uma vida melhor", da Coleção Viver,Aprender, o livro didático de Língua Portuguesa mais debatido no país nos últimos tempos, cuja responsabilidade pedagógica é da organização não governamental Ação Educativa. Se para diversos segmentos da sociedade, a atitude de registrar em um livro didático a construção "nós pega o peixe" representa um massacre à Língua Portuguesa ou revela um posicionamento demagógico e falacioso com relação à educação destinada às classes populares, para Marcos Bagno tal orientação pedagógica simplesmente reconhece as variantes populares da Língua Portuguesa faladas no Brasil há mais de 200 anos.


Para o escritor, o alarde em torno da abordagem presente na obra, que conta com o aval do Ministério da Educação (MEC), demonstra o enorme "preconceito linguístico" de nossa sociedade. Autor premiado na área acadêmica e também na Literatura, o professor da UnB investiga há décadas os fenômenos da sociolinguística. Em 1999, com a publicação de "Preconceito linguístico: o que é, como se faz" (Ed. Loyola), Marcos Bagno se transformou em referência nos cursos de Letras e de Pedagogia de todo o Brasil, que adotam a obra como marco teórico na formação dos futuros professores de Língua Portuguesa. No ano seguinte, publicou "Dramática da Língua Portuguesa", fruto de sua tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo (USP). Em sua pesquisa,apontou discrepâncias entre a língua realmente utilizada pelos brasileiros e a norma-padrão veiculada pelas gramáticas tradicionais, pelos livros didáticos e pela mídia.


Seu posicionamento de vanguarda se consolidou em 2009, com a publicação de "NÃO É ERRADO FALAR ASSIM! Em defesa do português brasileiro" (Parábola), obra em que defende abertamente o reconhecimento do "português brasileiro".


E Marcos Bagno não está sozinho em sua luta pelo reconhecimento de formas alternativas do uso de língua portuguesa. No último dia 20, a Associação Brasileira de Linguística (Abralin) e a Associação de Linguística Aplicada do Brasil (Alab) publicaram nota em que condenam a cobertura de veículos de imprensa sobre livro da Coleção Viver, Aprender. Passadas algumas semanas da
divulgação de trechos como "nós pega o peixe" ou "Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado", a polêmica ainda está longe de terminar. A centenária Academia Brasileira de Letras (ABL), por exemplo, por meio de nota oficial, condenou tanto a obra quanto a postura do Ministério da Educação (MEC) ao distribuí-la para as redes públicas de todo o país.


Para enriquecer o debate em torno da questão, a FOLHA DIRIGIDA procurou o professor Marcos Bagno, que fez a pioneira defesa do livro "Por uma vida melhor" no artigo "Polêmica ou ignorância? Discussão sobre livro didático só revela ignorância da grande imprensa", artigo disponível na página eletrônica do educador (www.marcosbagno.com.br). Concedida por "e-mail" (ou seria mais adequado correio eletrônico?), o depoimento aqueceu ainda mais o
debate sobre as diretrizes para o ensino de Língua Portuguesa no país. Além de propor a legitimidade de um "português brasileiro", o escritor critica a ABL, recomenda o engavetamento da Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), documento regulador do ensino programático da Língua Portuguesa, e atribui o

enfoque da cobertura em torno do caso a convicções políticas contrárias àquelas adotadas pelo Governo Federal. *FOLHA DIRIGIDA - O senhor foi uma das poucas vozes, com exceção de representantes do Ministério da Educação (MEC), a sair em defesa do livro didático "Por uma vida Melhor", da Coleção Viver, Aprender, no qual formas usuais da linguagem popular como "os menino pega o peixe" são apontadas como alternativas de uso da Língua Portuguesa. O senhor defende os autores do livro? Por quê?*

*Marcos Bagno -* Eu não fui uma das poucas vozes, fui talvez a primeira a me manifestar contra essa falsa polêmica que só revela a desinformação total dos meios de comunicação no que diz respeito à política de ensino de língua hoje no Brasil. Outras pessoas se manifestaram também, como a Associação Brasileira de Linguística (Abralin), que reúne mais de quatro mil especialistas da área, a professora Stella Maris Bortoni-Ricardo, pioneira nos estudos de sociolinguística educacional entre nós, o professor Sirio Possenti da Universidade de Campinas (Unicamp), o antropólogo Maurício Érnica e a professora Maria Alice Setúbal, do Cenpec, uma ONG que trabalha há muito tempo com educação. Podemos dizer que os linguistas e educadores em peso estão do lado dos autores do livro "Por uma vida melhor", porque sabem que o que aparece nesse livro não é nenhuma novidade. Ele só causa surpresa para os que ignoram o que se passa na educação  brasileira. Há mais de 15 anos que todos os livros didáticos de português abordam o fenômeno da variação linguística como porta de entrada para a conscientização de que não existem formas "erradas" de falar, mas tão somente formas diferentes, das quais se selecionou um conjunto muito restrito para compor a norma-padrão. A partir daí, todos esses livros mostram a importância de todos os aprendizes dominarem "também" as formas de prestígio, para que possam se integrar plenamente na cultura letrada. Parece que a dificuldade da mídia é entender o que significa a palavra "também".

*O simples fato de frases como "os menino pega o peixe" constarem em um livro didático foi suficiente para chocar professores e diversos segmentos da sociedade. Para o senhor, o que desencadeou tal reação?*


Nenhuma professora ou professor bem formado se chocou com essa situação porque sabem que o tratamento da variação linguística não é novidade nos materiais de formação docente. Os segmentos da sociedade que se escandalizaram com o fato só se escandalizaram por causa do escândalo sem fundamento e, repito, ignorante promovido pela mídia.

*Na sua avaliação, em que contexto essas frases são apresentadas na obra? Com que objetivo? A avaliação do ministro Haddad, de que as críticas foram feitas por pessoas que não leram o livro, procede?*


Em todos os livros didáticos de português disponíveis hoje, no mercado brasileiro, aparecem lições como a do livro "Por uma vida melhor", como preparação para introduzir os aprendizes ao mundo letrado e às normas urbanas de prestígio. O ministro tem toda a razão: 99,9% das pessoas que têm falado do assunto não viram nem de longe a cor do livro e falam por ter ouvido falar, o que é uma leviandade, principalmente por parte da mídia.


*Por outro lado, o simples fato de a frase constar em um livro didático não causa confusão entre os estudantes?*


Não, de modo algum. A abordagem da variação linguística tem se revelado extremamente frutífera em sala de aula para que as pessoas entendam que seu modo de falar é lógico, coerente, tem uma gramática própria. Com isso, cria-se um ambiente pedagógico mais acolhedor que propicia o interesse dos estudantes pelo acesso às demais maneiras de falar e de escrever.


*A imprensa mostrou-se despreparada ao abordar o tema, ou, propositalmente,optou por alimentar essa polêmica?*


As duas coisas: a imprensa se revelou, como sempre,ignorantíssima a respeito de questões linguísticas. E com base nessa ignorância criou a polêmica para tirar proveito político. Como a grande mídia brasileira é comprometida até a medula com as classes dominantes e odeia o PT, os jornalistas acharam que poderiam aproveitar o tema para atacar o governo. No entanto, a abordagem da variação linguística é proposta desde, pelo menos, 1997, quando o MEC sob a gestão de Paulo Renato Souza, tucaníssimo, publicou os Parâmetros Curriculares Nacionais, documentos que advogam por uma educação mais democratizadora e menos autoritária.

*A Academia Brasileira de Letras divulgou em nota oficial, que foi publicada na imprensa, inclusive pela FOLHA DIRIGIDA: "todas as feições sociais do nosso idioma constituem objeto de disciplinas científicas, mas bem diferente é a tarefa do professor de Língua Portuguesa, que espera encontrar no livro didático o respaldo dos usos da língua padrão que ministra a seus discípulos, variedade que eles deverão conhecer e praticar no exercício da efetiva ascensão social que a escola lhes proporciona". O senhor concorda com o posicionamento dos acadêmicos diante da questão? Por quê?*


Não concordo com nada que venha da Academia Brasileira de Letras (ABL) porque, na minha opinião, essa entidade simplesmente nem deveria existir. Ela não serve para absolutamente nada, não tem nenhum impacto em nossa vida social e cultural e só serve para gastar dinheiro público. Esses 40 senhores e senhoras não têm nada a dizer sobre ensino porque não atuam na área. A única exceção é o professor Evanildo Bechara, gramático respeitável, mas que, infelizmente, é francamente reacionário quando a questão é ensino de língua.


*Como o senhor define o "preconceito linguístico" e de que forma ele ocorre em nossa sociedade? O preconceito linguístico está atrelado ao preconceito social? Por quê?*


O preconceito linguístico é, na verdade, um disfarce para um preconceito que é, no fundo, social. Hoje em dia não ‘pega bem’ discriminar uma pessoa por ser mulher, negra, pobre, deficiente físico e até mesmo homossexual, mas nossa sociedade hierarquizada e tradicionalmente autoritária precisa de uma arma para discriminar e excluir. Por isso, o preconceito linguístico é tão
eficiente: ninguém se escandaliza quando alguma pessoa repete os mitos de que "brasileiro fala tudo errado", "a língua portuguesa está em ruínas" e outras besteiras do tipo. Da extrema esquerda à extrema direita, todo mundo acredita nessas superstições.


*Quais metodologias de ensino de Língua Portuguesa o senhor defende em seu livro "NÃO É ERRADO FALAR ASSIM! Em defesa do português brasileiro"?*


Uma metodologia muito simples: parar de lutar contra o português brasileiro, que é a nossa língua materna, e aceitar sem susto as formas linguísticas que são características dele e que constituem a nossa gramática intuitiva. Mostrar que ao lado das formas clássicas, padronizadas, "também" existem formas novas que já estão em uso há pelo menos 200 anos. Que é certo dizer "os óculos" e também "o óculos", "assisti ao filme" e também "assisti o filme". Não é nada de radical. É simplesmente reconhecer que o que existe...existe!


*Quais repercussões a obra teve no meio acadêmico e entre os profissionais que atuam na Educação Básica?*


Não sei dizer. Como ela foi lançada recentemente, ainda não posso avaliar. Mas acredito que terá a mesma boa recepção que meus outros livros têm merecido.


*Recentemente, o Brasil assinou um acordo ortográfico com a comunidade dos países de Língua Portuguesa. O senhor acredita que deveria haver alguma iniciativa similar no que diz respeito às regras gramaticais? De que forma esse processo deveria ser conduzido?*


Não se pode confundir ortografia com gramática. A ortografia não faz parte da língua, é um mero sistema representacional para registrar a língua falada. As regras gramaticais são múltiplas e variáveis, estão em constante mudança, não é possível submetê-las a uma padronização semelhante à da ortografia. Por isso, uma atitude mais sensata é abandonar a ideia de normatização e aceitar a ideia de variabilidade gramatical.

*Ainda hoje, o ensino programático da Língua Portuguesa é baseado na Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), aprovada em 1959. O senhor acredita que é preciso fazer uma revisão da NGB? Por quê? E dentro de qual orientação?*


A NGB já devia estar no museu há muito tempo. Ela foi produzida antes da introdução da ciência linguística nas universidades brasileiras. Está repleta de equívocos que só atrapalham o ensino. Não é preciso criar uma nomenclatura unificada porque cada escola de pensamento linguístico promove análises diferentes dos fenômenos da linguagem e, por isso, cada escola precisa criar e definir seus próprios termos. Como não é preciso ensinar
nomenclatura gramatical na escola, a NGB pode ser abandonada para sempre.

*Como o senhor avalia o uso de manuais de estilo de grandes editoras como referência para escrita de estudantes e professores?*


Um perfeito desastre. Esses manuais se mostram muitas vezes mais conservadores e autoritários do que as boas gramáticas normativas. A prova de sua ineficácia é que, pesquisando a escrita jornalística, é possível ver que os redatores desobedecem alegremente as prescrições rígidas desses manuais.


*Alguns desses manuais, por exemplo, já indicam a mesóclise (dar-te-ei), por exemplo, como construção ultrapassada. Eles estão no caminho certo? Por quê? *


O caso da mesóclise é uma exceção que confirma a regra, e a regra é a prescrição mais autoritária do que a das boas gramáticas normativas. O que esses manuais dizem, por exemplo, sobre regência verbal, voz passiva e outros aspectos da gramática é extremamente conservador.

Agora é com vocês!
E a vida segue!